Engraçado como as coisas na vida se desenrolam de um jeito em que, eventualmente, tudo faz sentido (menos a situação política no Brasil, claro). Participei do curso sobre "descolonização" da cultura - e escrevo essa palavra entre aspas por discordar da escolha do termo no título da proposta, uma vez que descolonização e decolonização são conceitos diferentes, mas enfim, quero escrever mais sobre estes termos e suas utilizações incoerentes em breve... Em seguida aos encontros deste curso e as inquietações que em mim foram despertadas, o desenrolar dos eventos comprovou o quanto esse tema está intimamente relacionado à tudo que acontece no meu - no nosso - dia a dia. Voltei hoje da última edição do MIMO Festival, em Amarante, ansiosa para compartilhar algumas impressões. [Apenas para situar: o MIMO é um festival de música do mundo criado em 2004 em Olinda, Pernambuco, Brasil. Expandiu da cidade originária para outros pontos do Brasil e, em 2016, chegou para sua primeira edição em Portugal. Fui às últimas três edições e sou cada vez mais fã desse evento. Gratuito, eclético, acessível, enfim, considero um dos melhores festivais de música realizados em Portugal hoje em dia.] Chegamos em Amarante na sexta-feira à tarde e, neste primeiro dia de evento, assisti à todos os concertos que aconteceram no Parque Ribeirinho, o principal palco do recinto. A noite ali começou com Miramar (PT), projeto de Frankie Chavez e Peixe, guitarrista do Ornatos Violeta. Som instrumental de primeira qualidade que nos leva diretamente para a beira do mar, lindamente acompanhados dos vídeos realizados por Jorge Quintela. Em seguida, tomaram o palco os paulistas do Bixiga 70 (BR), que fazem uma mistura deliciosa de samba-roque, samba-jazz, samba-reggae, samba-muita-coisa-boa, aquele som que me enche de orgulho de estar familiarizada apenasmente pelo fato de ser brasileira. Mas o melhor do primeiro dia de MIMO 2019 foi, sem dúvida, o gingado político dos 47SOUL, banda de "Electro Arabic Dabke (Shamstep)" criada em 2013 em Amman, Jordânia. Pessoalmente, não acho que exista nada melhor do que uma batida que não te deixa ficar parado somada à letras potentes. Como estou longe de entender árabe só posso falar das canções em inglês, como Everyland, que nos acerta com frase certeiras como "every land is a holly land/every people is the promised people" e "From Africa to Palestine the sunlight will shine/Oh my comrade pick up, live up, yourself and mind!". Mas a sonoridade do árabe é uma coisa tão linda e especial que nem era preciso entender a letra para se emocionar. Por motivos de falta de recursos tecnológicos não tenho nenhum registro desse incrível concerto, mas nada que o youtube não ajude a entender a vibe dessa banda que instantaneamente virei fã: A noite contou ainda com o som impecável do Salif Keïta (Mali) e sua banda, que presenteou Amarante com uma mistura de sonoridades africanas, européias e islâmicas, além de um emocionante solo de kora (tem coisa mais incrível do que descobrir novos instrumentos?). No sábado, depois de sofrer um bocado com a chuva que assolava o parque de campismo, fomos ao palco principal ouvir o vencedor do Prémio MIMO de Música, Chico da Tina. Fomos lá principalmente porque o tal Chico é irmão de um amigo do meu namorado (aparentemente, a família e os amigos foram em peso conferir o primeiro concerto do menino). Inicialmente com alguma graça, parecia boa sacada a paródia minhota do hip hop americano, valorizando instrumentos e pintores portugueses, como Amadeo de Sousa Cardoso (Amarantino, inclusive) através de projeções engraçadinhas de páginas da wikipedia no telão. Mas a pseudo-persona do Chico não parece ir muito mais além disso, filosófica e musicalmente falando. Bobo e sem graça e de macho português falando merda ao tentar ser engraçado já estou satisfeita, obrigada. Felizmente corrigi o erro a tempo e consegui correr para assistir ao Hamilton de Holanda na Igreja de São Gonçalo. Com um virtuosismo que nunca escorrega pro pedante ou enfadonho, todos os olhos ficaram, por mais de uma hora, vidrados em um bandolin. O pianista italiano Stefano Bollani foi substituido pelo argentino Pablo Lapidusas, que segurou a onda maravilhosamente bem ao não deixar transparecer em nenhum momento que era ali, naquele cenário mítico-barroco, a primeira vez que os dois músicos improvisavam juntos. Foi lindo, mais um momento de ápice de orgulho da música brasileira. No sábado ainda assisti ao afro-beat de Seun Kuti & Egypt 80 (Nigéria), que me fez pensar em como a música africana (e uso esse termo na falta de um melhor, sabendo que não faz sentido unir tanta diversidade sob um único nome) é tão rica, tão diversa em instrumentos e batidas, e além de tudo é a base para (quase?) toda a música europeia e das americas que ouvimos hoje aos montes, mas que ainda é lida por aqui como "exótica" ou "diferente", sempre com uma certa distância. Os europeus adoram a cultura não-europeia, mas só para fins de consumo cultural. Ou para o futebol e outros esportes, pra trazer medalhas pro país... fora isso, são só aqueles estereótipos xenófobos contra africanxs (e brasileirxs) que já estamos acostumadíssimos a ouvir. E o discurso sobre racismo e xenofobia teve voz no concerto do Criolo, artista paulista que já é bem famoso pelas bandas de cá. Tocou todos os hits, o concerto foi bonito, ele conversou com a platéia, tudo bem nos conformes. Achei graça hoje quando li uma matéria no jornal O Público sobre o MIMO, com o título "Mimo dança e sorri, mas escuta palavras de desordem". O autor comenta com certa surpresa o fato do show do Criolo ser politizado, com mensagens no telão como MARIELLE VIVE e CENSURA NÃO DITADURA NÃO. Honestamente, não entendo como um artista brasileiro poderia, hoje em dia, fazer um concerto que não seja político. E sim, o Criolo falou lá coisas importantes, mas todo aquele papo de "só o amor vence", olha, sinceramente, eu não compro. "O amor é importante, porra", mas o que vence é a luta. E não dá pra lutar só abraçando o coleguinha do lado - ou alguém já viu projeto de fascista se arrepender de fazer ou falar merda depois de receber um abraço? Eu não. Finalmente chegou o domingo, último dia de MIMO 2019, e ainda à tarde fui conferir o concerto de Fortuna (BR) no palco do Museu. A cantora brasileira cantou em hebraico e ladino, idioma falado pelo judeus sefarditas que viviam na Península Ibérica até a inquisição, no séc. XV. Foi emocionante ouvi-la cantar e contar as histórias das suas origens ali, dentro de um antigo convento católico (hoje transformado em museu). A inquisição portuguesa ainda é um tema ainda pouquíssimo discutido por aqui e a fala de Fortuna foi um ato lindamente político. Em seguida, o público foi a loucura com o som indescritível dos Violons Barbares. O "power trio" virtusos, com integrantes da Bulgária, França e Mongólia, fez toda gente dançar com a mistura da música destes países. A simpatia dos músicos, que aprenderam várias frases em português e ainda foram autografar discos e tirar fotos com o público após o concerto, foi refrescante. Sem dúvida, foi um dos melhores concertos de todo o festival. Em seguida, no palco principal, assisti ao concerto mais esperado por mim, não pela qualidade técnica mas por todo o apego ao sentimentalismo da trilha sonora da minha vida amorosa recente escrita pelas mãos do Rubel. Já o tinha visto ao vivo esse ano, mais cedo, num concerto intimista voz e violão no Entroncamento, mas como aquele era o último concerto de uma longa digressão, culpei o cansaço. Afinal, me pareceu que Rubel não se sente mesmo muito à vontade nos palcos e se calhar a onda dele é escrever e gravar em estúdio. Ou, de repente, ele precisa de mais prática pra se sentir mais a vontade, porque ficou muito claro que o perfeccionismo dele atrapalha e aumenta o nervosismo ou a insegurança. Mas, ainda assim, cantamos juntos quase todas as letras, algumas com lágrimas nos olhos. Ele nem voltou pro "mais um", coitado, aparentemente frustado com os erros que deixaram a plateia toda meio UÉ (ainda assim sigo te adorando, Rubel). O MIMO foi fechado por ninguém menos que a diva Mayra Andrade, de Cabo Verde, que comandou um showzasso com direito a uma multidão eufórica e muitos bis. Como o cansaço de três noites mal dormidas já tinha batido, assisti à tudo de longe, fora do aglomerado dançante. Ainda a escutei cantar a linda Vapor di Imigrason e outras tantas canções, tanto em criolo caboverdiano como em português, e cheguei a conclusão de que a coisa que mais me emocionou no festival todo foi ver o público português aceitar outros sotaques. Quem sabe assim, através da música, levem essa admiração para o dia a dia, no trato usual com os imigrantes. Indo embora, ainda escutei um português comentando que Mayra era "a Beyoncé cantando em português" e fiquei me perguntando porque alguém, depois dessa lição de decolonização que foi esse festival, com essa mistura de sons tão ricos vindos de todas as partes do mundo, ainda usa parâmetros imperialistas pra qualificar uma produção tão original que não, não pode ser comparada com nada, nem mesmo com a Beyoncé. Fiquem com um pouco da maravilha do talento dessa mulher e me digam o que é a música pop norte-americana perto disso:
2 Comments
This month I've participated in a short course, promoted by Porto city hall, entitled "The Time(s) of The Contemporaneity 2: Decolonising the Culture". According to the program, the course "brings together artists and intellectuals to discuss the relationship between art, race, institutions and the legacy of colonialism. It addresses decolonization in the broadest sense of the term: as an acknowledgment of colonial legacies in the present, as an ongoing system of oppression, and as a practice of affirming different forms of repressed knowledge. The invited speakers will explore decolonial methodologies in the museum and gallery, ways to critically interact with the colonial past, and how third world feminisms have used revolutionary socialism." Even though I considered the tuition price too expensive (50eur is a considerable amount of money if you live in Portugal), I was interested in the subject and on the invite speakers, and also knew a couple of friends who would participate too, so I decided to sign up. The first day was funny. You know, when you gather a bunch of random people in a fancy room and everyone is a bit awkward, people have to introduce themselves and there's this mix of curiosity with fear of embarrassing yourself in the air... And also Claire Bishop, one of the course tutors, was not present due to a delayed flight, and I'm sure things would feel different if she was there - she has a great presence and truly knows how to engage the audience on debates, as we learned on the second day onwards (to be continued on part 02 - stay tuned). But let me go straight to what matters on day 01: Françoise Vergès was there. And what a presence, my friends. What a presence. With the title "The Im/possible Decolonisation of the European Museum", she presented some case studies as starting points for the discussion on decolonialism, such as the Africa Museum in Tervuren (Belgium), and the exhibition Black Models - From Gericault to Matisse, presented at the D'Orsay Museum in Paris (France) this year. We talked a bit about the concept of race/racism in museum contexts and also about representation, restitution, and reparation as common attempts to decolonize contemporary european institutions - museums, academia, etc. Starting with the obvious, we all (should) know that museums are European inventions. And that they promote Eurocentric visions and interpretations of art, history, sciences, technology, and everything else that exists in the world. So if we decide to discuss the issue of decolonizing the museum, the question we must ask is how can we decolonize an institution that has colonialism on its roots? The title of Vergès presentation - "im/possible" - makes us think if this task is even reasonable. Can we create new ways/institutions for producing, showing and debating art - decolonized from its conception - or can contemporary museums be fixed - I mean, decolonized? Vergès commented on some ways that different institutions are moving towards a decolonized posture. One possibility refers to REPRESENTATION: we all know that main art collection are predominantly (99.888%) composed of european male artists - and we are not even talking about classical art collections, with works produced in a time when they were the only ones allowed to create art. Not many contemporary art collections, museums, galleries, and auction houses can claim to present a truly diverse set of artists. Some may even have works from a "black woman" artist, or maybe a "south american queer" artist, but the need to present them always accompanied by a label of differentness signs that they are always seen as "the other". Or have you ever been to an exhibition admittedly entitled White European Man Artists? And even in a more basic level, regarding museum staff, how many people of color do you usually see working on museums and other art institutions? (We are talking here about a European context since the course was held in Portugal and this is a predominately white country, but the question can easily be applied to other countries, like Brasil, for instance) - and by working I mean high-level positions, not just cleaning and security staff. How can we normalize this absurd? Françoise mentioned the work of Patricia Kaersenhout and her performance The Clean Up Woman:
Representation is not enough. Nowadays, museums are questioned with the issue of displaying objects that were stolen during colonization. Entire museums made up of plunder items, sometimes even entire monuments were taken and re-placed inside neoclassical buildings across the sea. And now, years after those massacres happened, they are considering if they should give the objects back or not... If the RESTITUTION of stolen objects to their countries of origin is the best thing museums can do, are we really talking about decolonization? I mean, giving back something you STOLE sounds pretty basic, right? While kids on 2nd grade are taught not to steal the toys from their colleagues, european and north-american museologists, art historians and curators are still debating among them what they should do with their huge collections of stolen objects. And they don't even ask the stolen countries if they want their objects back. So how about REPARATION, another fashionable term among open-minded sections of the art world? I mean... How can years and years of colonization be repaired? And more particularly, how can this be done inside the museum walls? As Vergès showed us, some museums and curators are trying (but man, are they far from enough). Take the case of the second example she brought to the discussion, the group exhibition Black Models - From Gericault to Matisse, presented at the Museum D'Orsay. The whole idea of this show was to present "the evolution" of black people as models for artworks from the time of slavery abolition to present times. To me, personally, this doesn't sound like a strong curatorial statement - in fact, sounds racist to bring together artworks just because of the skin color of their models, disregarding the whole social/conceptual/aesthetic context of each individual work and artist. Some artists painted black models because they owned slaves, so should this really be presented as a harmless relation between model and artists? Anyway, the curators aimed to go further, so they did some research on the models and find out some historic information about them, sometimes even their names. That's the case of the following painting, renamed Portrait of Madaleine but formerly known as Portrait of a Negress: Apparently, renaming the model seemed to be enough. The poor woman now has her dignity back! We did it! Yay to us!
But as pointed by Vergès, the issue of changing a slave's name goes much deeper than just finding out their "European" name. I mean, you didn't think a woman born in any of the former French colonies during the first colonial empire would be named Madaleine, right? So why museums and curators tend to adopt this reparatory attitude, like they did something important to repair a historical dept, instead of educating visitors on the true depth of the issue? Why most museums continue to address social issues superficially, treating paintings like some type of band-aid covering a ridiculous fraction of a much bigger and still-open wound? WHY ARE MUSEUMS STILL SO AFRAID? I mean, I can't blame museums. People are still afraid of talking about racism, imperialism, colonization - these are almost forbidden topics to debate here in Portugal. But as Françoise Vergès said, decolonization starts with yourself, and we must decolonize our gaze before proposing new ways of understanding the world. I'll continue to share my impressions on this course in the hope to continually decolonize my world view and keep on questioning others. |